A denúncia constante da hipercrise da saúde brasileira e a extinção do Inamps
“A política de saúde no país começa na política econômica e na política social, que são resultantes da política de afirmação de um povo.” Com esta idéia politizada e participativa da saúde, em seus dois mandatos no Parlamento Sergio Arouca reiterou numerosas vezes a urgência de mudanças no setor, que passava pelo que chamava de “hipercrise”. Em uma visão ampla, permitida por sua experiência como sanitarista, Arouca incluía no tema da saúde não apenas a ausência de doença, mas emprego, lazer, esporte e condições básicas de infra-estrutura. Em uma palavra, saúde para Arouca era dignidade.
O deputado costumava começar seus discursos no Parlamento sobre a crise da saúde brasileira dizendo que, se Oswaldo Cruz estivesse vivo, encontraria no país as mesmas doenças que combateu no início do século 20. À exceção da varíola e da paralisia infantil, doenças como malária, leishmaniose, esquistossomose e mal de chagas permaneciam endêmicas. Arouca lamentava que, além destas doenças que dizia “ligadas ao subdesenvolvimento e à miséria”, o país sofria também das “doenças do desenvolvimento”, como a Aids, o câncer, as doenças relacionadas às más condições de trabalho e à violência, que constituiria, no ver de Arouca, uma verdadeira epidemia urbana. Para sanar este quadro de hipercrise, expresso em altas taxas de mortalidade, na falência do parque hospitalar, numa crise de recursos humanos que desembocava em greves constantes e na decadência estrutural do atendimento à população, herdada do regime autoritário, Arouca propunha um pacto de urgência entre os poderes Legislativo e Executivo de modo a estabelecer uma forma de financiamento da saúde que fosse adequada às necessidades da população.
“O Brasil tem na Constituição de 1988 um dos textos sobre saúde mais avançados da América Latina”, Arouca afirmava em discurso. “Apesar disso, existe uma hipercrise de saúde, que não é um fator isolado, mas resultado de um processo social profundo, que depende mais de salário, habitação, saneamento básico, escola e comida do que de médico.” O arcabouço legal para a implantação de uma reforma da saúde a que Arouca se refere foi lançado na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que presidiu, e na Constituição, que estabelecem a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, a ser alcançado através de um sistema único de saúde baseado na democratização, universalidade, integralidade e descentralização. O empecilho, o deputado chamava atenção, é que se delegou a estados e municípios a responsabilidade pelos serviços de saúde, centralizada durante a ditadura, e os recursos destinados ao setor ainda se perdiam no trajeto desde os cofres públicos até o cidadão.
O desafio, porém, é maior que a simples fiscalização da aplicação de verbas: “o problema da saúde não se resolve apenas pela saúde, já que enfrentamos uma crise global – ética, política, econômica e educacional – de um país que não tem um projeto de nação.” A solução, no entanto, não é impossível: “Isso se resolve, no meu entendimento, com uma definição política, pois isso não é um problema técnico: é um problema de opção política, que temos de enfrentar para desviar o rumo desse desenvolvimento perverso, concentrador de renda e genocida que tentam implantar neste país.”
Relator da lei que extinguiu o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), Arouca foi duramente criticado. “Todos achavam que era um suicídio” – disse em uma de suas últimas entrevistas – “pois eu estava propondo a extinção de uma instituição com mais de cem mil funcionários e que iria mobilizar tanto trabalhadores quanto aposentados. De fato, sofri muita pressão. A surpresa é que, na hora da decisão final, as lideranças do Movimento dos Trabalhadores do Inamps eram favoráveis à extinção, em nome de um novo projeto.” Este novo projeto, que vigora atualmente, municipalizou os serviços públicos de saúde e democratizou sua gestão com o retorno dos trabalhadores para a gerência médica.
Uma das dificuldades de Arouca na relatoria da extinção do Inamps foi fazer seus pares políticos e a população em geral entender que a extinção não era decorrência das fraudes descobertas na instituição, mas um imperativo para que se efetivasse a descentralização do sistema de saúde público, estabelecida na Constituição. Assim, com a efetiva implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde passaria a atuar como órgão central, enquanto às secretarias de Saúde dos estados e municípios competiria a gestão. Este processo de descentralização já havia se processado em todo o país à exceção do Rio de Janeiro e Bahia, ainda administrados pelo Inamps, quando sua extinção foi aprovada.
Como Arouca justifica, o Inamps era um sistema que incitava à corrupção, já que pagava por atendimento prestado, incentivando a internação desnecessária, a indústria da loucura e a medicamentação exagerada. “No entanto”, dizia, “a extinção do Inamps não deve significar a impunidade dos crimes cometidos contra ele, e o roubo de recursos da assistência médica deve ser investigado até se encontrar e punir os culpados.” Arouca só concluiu a redação do projeto de lei que extinguiu o Inamps depois de ouvir os representantes de todos os setores envolvidos e estabelecer a transferência de seus antigos funcionários para outros órgãos públicos. Das 71 emendas apresentadas ao projeto de lei, rejeitou apenas 15.
Além da crítica à estrutura do sistema de saúde brasileiro e a participação ativa em sua reformulação, Arouca antecipou, com sua experiência como sanitarista, a chegada das epidemias de dengue e cólera ao país. Apesar de todo o alarde que produziu em discursos no Parlamento e entrevistas na imprensa, Arouca não conseguiu mobilizar o governo para adotar medidas que evitassem as epidemias. Questionador do tratamento dispensado à Aids, que classificava como “irresponsável”, Arouca foi um dos primeiros a defender o controle do preço dos medicamentos e a abordagem não-preconceituosa da doença, considerando não só os fatores biológicos, mas também seus aspectos sociais e comportamentais. Incansável, articulou nos bastidores a aprovação de projeto de lei do deputado Paulo Delgado que modificou o tratamento da saúde mental, banindo os maus-tratos, o uso de técnicas terapêuticas ultrapassadas em todo o mundo, como o eletrochoque, e a indústria da loucura, que lucrava com a internação crônica.