A segunda metade da década de 80 viu surgir um Brasil diferente. Um país com uma população destemida, que ia às ruas reivindicar seus direitos e ocupar o espaço que há 20 anos lhe era negado. A ditadura, desmoralizada, ainda mostrava a sua força, mas já não tinha mais como frear o movimento pela redemocratização que varria o território verde-amarelo de Norte a Sul, de Leste a Oeste, e mobilizava milhões de brasileiros nas ruas, nas praças, nas universidades, nos sindicatos, nas igrejas e onde quer que houvesse alguém disposto a contribuir, da forma que pudesse, com a derrota daquele regime sombrio e opressor. Os políticos de oposição ganhavam voz e mais cadeiras no Congresso Nacional. A intelectualidade – ou o que sobrou dela depois das prisões, das torturas, dos “desaparecimentos” –, que desde o fim dos anos 70 se reaglutinara dos escombros, vinha estabelecendo um diálogo frutífero com a sociedade civil e com os seus representantes e debatendo propostas para um novo Brasil, livre e soberano.Dentro desse quadro social e político, um lugar de destaque era ocupado pelos militantes da saúde pública – com Sergio Arouca no centro do movimento. A força de seus argumentos, de suas utopias e de sua vocação de pensador (e realizador) levaram o presidente da Fiocruz a ser indicado, em meados de 1985, presidente da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) pelo ministro Carlos Sant’Anna. À frente da CNS, Arouca faria uma revolução e criaria um marco histórico, um emblema de um momento em que o Brasil voltava a ser Brasil.Nos cinemas, o país olhava para o seu passado recente. Em 1986, ano em que foi instalada a 8ª CNS, o filme O homem da capa preta, de Sérgio Resende, sobre a vida de Tenório Cavalcanti, ganhava o Festival de Gramado. O governo brasileiro lançava o Plano Cruzado, uma tentativa frustrada de arrumar a economia que congelou preços e ajudou o PMDB a vencer as eleições para governador em todos o estados – com a exceção de Sergipe. Na Ucrânia, no entanto, o fim do mundo parecia ter chegado: o mais grave acidente nuclear da história, devido à explosão de um reator atômico na Usina de Chernobyl, mataria 30 pessoas, obrigaria 135 mil a abandonar a região e causaria câncer em cerca de cinco milhões.
No Brasil de 1986, a tônica era a saúde. Conhecida afetuosamente pelos militantes da reforma sanitária pela alcunha de “oitava”, aquela conferência reuniu em Brasília mais de quatro mil delegados de todas as regiões e classes sociais, em jornadas que avançavam pela madrugada e chegavam a se prolongar por até 14 horas. O que meses antes parecia mais uma das “loucuras” – é assim que os mortais comuns vêem as idéias dos idealistas – de Arouca se tornara realidade: a CNS conseguia pela primeira vez em quase 45 anos de história ser verdadeiramente popular. Sim, porque da primeira (em 1941) à sétima (em 1980), os debates se restringiam às ações governamentais, com a participação exclusiva de deputados, senadores e autoridades do setor. A intenção de Arouca era a de abrir mesmo, e assim ouvir as incontáveis experiências na área que existiam Brasil afora. Reunir brasileiros para saber e discutir como vivem esses brasileiros, quais as suas condições de saúde, que melhorias almejam. Deixar de contar a saúde pelos números e passar a enxergar cidadãos.
Presidente da Fiocruz – cargo que assumiu em 1985 –, Arouca já mostrara as suas credenciais dando à Fundação um sopro de renovação, pondo-a novamente em movimento (acelerado, diga-se). Liderando a instituição, militante histórico da saúde pública, seu nome apresentara-se quase que naturalmente como de consenso para presidir a 8ª CNS. O fato de ser comunista de carteirinha também não o atrapalhou, mostrando que o Brasil, finalmente, vivia dias mais tolerantes. Ao assumir e decidir que a conferência deveria refletir o momento efervescente pelo qual o país passava, Arouca roda o país acompanhando as conferências estaduais, preparatórias da Nacional. Ele esteve em todas elas, participando ativamente das discussões – sem abdicar de suas funções como presidente da Fiocruz. Foram essas conferências, juntamente com as municipais, que disseminaram pelo país o debate sobre a reforma sanitária e a importância de se ter uma CNS popular. Um conceito que os pensadores da saúde já discutiam há alguns anos, em instituições como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). No entanto, a primeira convocação pública da Oitava deu-se em um meio até então mal visto por grande parte da intelectualidade nacional. Quem inicialmente chamou a atenção dos brasileiros para a CNS foi o padre Albano, o sacerdote progressista vivido pelo ator Cláudio Cavalcanti na novela Roque santeiro, de Dias Gomes, exibida pela Rede Globo. A ficção abordava o real e dava uma força fundamental para o sucesso que viria a ser a CNS.
A CNS foi aberta numa segunda-feira, 17 de março de 1986, pelo presidente José Sarney, que assumira em definitivo depois da morte de Tancredo Neves. Em seu discurso, para uma platéia que lotara o Ginásio de Esportes de Brasília, Sarney afirmou que a Conferência representava a “pré-Constituinte da Saúde”. Arouca, feliz com a grande representatividade obtida pela Oitava, disse que aquele era “o evento mais significativo em termos de debate da política de saúde já acontecido na história do país”. Durante cinco dias, quase cinco mil pessoas, entre delegados e observadores, discutiram a saúde em 98 grupos de trabalho. Três macrotemas reuniram os grupos: Saúde como direito, Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento do setor. Os itens acima mereceram, no relatório final da CNS, respectivamente, 13, 27 e nove artigos, aprovados por larga margem na plenária final. O boicote levado a cabo pelo setor privado, que poucos dias antes decidiu se ausentar da Conferência, não impediu a discussão produtiva também desse item da pauta.
Um dos grandes momentos da Oitava foi o consenso obtido em torno da criação do Sistema Único Descentralizado de Saúde (Suds), que depois se transformaria no SUS. A interdependência entre política social e econômica e a conceituação dos serviços de saúde como públicos e fundamentais para a população foram outras importantes definições feitas pela CNS. Mas o legado mais precioso da Conferência foi a consolidação da idéia da Reforma Sanitária – que voltaria à agenda, com força, durante a Constituinte (1987-88). Naquela ocasião, a da feitura de uma nova Carta Magna que simbolizaria o redemocratizado Brasil, Arouca, dando provas mais uma vez do seu poder de síntese, fez a defesa popular – tida como brilhante por quem assistiu – dos textos da Oitava, que subsidiaram a discussão sobre o setor da saúde. A lucidez e o compromisso público do garoto de Ribeirão Preto ganhavam mais uma batalha.